textos
Geoprópolis, João Machado
Nas florestas, nos campos, nas cidades e até aqui, no entorno da Villa Mandaçaia, são locais onde vivem as abelhas sem ferrão. Somando-se quase 300 espécies, entre elas, a própria mandaçaia, essas abelhas de pouco mais de um centímetro são capazes de polinizar quilômetros inteiros de florestas nativas, como é o caso de nossa Mata Atlântica. Produzem o mel, a cera e o geoprópolis, substância da qual se originou o título dessa exposição individual de João Machado e que corresponde à mistura de terra (geo) e própolis feita pelas abelhas-sem-ferrão. Conhecidas ainda como abelhas indígenas ou nativas, as abelhas sem ferrão mantiveram-se em comunhão com o clima, a vegetação, os animais e os povos deste território, um equilíbrio que foi rompido por um intenso processo de depredação ambiental, iniciado com a invasão dos ibéricos nas Américas. A chegada da idade moderna atingiu violentamente as populações
nativas, além de provocar toda uma reordenação ambiental, como é o caso da vinda de abelhas com ferrão ou as de origem europeia que, hibridizadas com as vindas da África, tornaram-se predominantes por aqui. Esta foi uma dentre muitas consequências do comércio triangular exploratório no Atlântico, que subjugou pessoas, escravizando-as, expropriou mercadorias, metais, animais e plantas. O suposto progresso moderno e seu desenvolvimento é hoje uma ameaça, que tem levado várias espécies de abelhas sem
ferrão a viverem em iminente risco de desaparecimento. Ser agente na defesa das abelhas nativas é o ponto de partida da produção do artista e ativista João Machado, que soma mais de dez anos de pesquisa com as abelhas sem ferrão. Trabalho este que se materializa aqui, no desenho do projeto Geoprópolis. O espaço onde nos encontramos será, por alguns dias, semelhante a uma caixa racional de criação de abelhas, ponto de partida e/ ou de chegada das derivas de mapeamento de seus ninhos. Além das saídas pelo entorno, há ainda um mapa onde serão acumulados registros das localizações da presença das abelhas. Geoprópolis se compõe também pela obra Terra em defesa da cidade, uma escultura construída por Machado com caixas de abelhas nativas, cera e resina de abelhas, latão e telas de tamanhos variados. Nessas janelas são exibidos vídeos de colmeias encontradas, que serão constantemente
atualizados por novos registros produzidos das derivas durante o período da mostra. A busca por esses seres que insistem em fazer florestas sobre e apesar de todo metal, concreto e asfalto, é de algum modo uma forma de rastrear outra cidade que não seja apoiada no modelo colonial-moderno. Sob outra perspectiva, nos abaixaremos, esticaremos nossos corpos ou contorceremos nossos pescoços para olharmos nos ocos de árvores, nas fendas dos muros, nas cavidades das paredes, nos postes, ou ainda, no solo. E, por fim, para colocarmos-nos diante da seguinte questão: “nos
lembramos da última vez que nos pensamos como parte de um corpo coletivo”?
Khadyg Fares 06/05/2023
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Geoprópolis
Uruçu, Mandaçaia, Jataí, Manduri, Bugia, Borá, Tubuna, Irapuã, Iraí.
De nomes sonoros, elas se comunicam pela dança. Na entrada de seus ninhos, são suas esculturas complexas esculpidas em cera que as singularizam. Elas, as abelhas-sem-ferrão, são o desejo de existência de Geoprópolis, mistura feita de terra e própolis, que dá nome à exposição individual de João Machado e acaba de pousar aqui no Bananal Arte e Cultura Contemporânea.
Um pouso que quer aterrar, mas também quer soprar a poeira da velha separação absoluta, que não há e nunca houve, entre as florestas, as plantas, as flores, as folhas, as pedras, as montanhas, o solo, a água, o clima, todos os outros animais e povos deste território. Uma balela criada e imposta irresponsavelmente pelo ocidente, que se transformou em fundamento, como é possível notar pelas tentativas incessantes de matar a si e a tudo aquilo que nomearam como “os outros”. As abelhas indígenas, nativas, ou sem ferrão, atadas à produção da vida, nos fazem lembrar que estamos vivas/es/os e envolvidas/es/os nisso tudo. Não estamos fora, pois o fora não existe: “do lado também é dentro” como nos lembra, sempre que pode, Adelaide de Estorvo.
Mais que uma exposição de arte, Geopropolis - como definiu certa feita João Machado: “é uma carta de amor às abelhas sem ferrão”. Os trabalhos instalados no Bananal Arte e Cultura Contemporânea correspondem a mais de dez anos de pesquisa e defesa das abelhas sem ferrão. A cera, o mel e o própolis são base imagética e matérica da construção estética de Machado e dão corpo às suas produções. Estão aqui presentes nas obras “Terra em defesa da cidade” (2019) e “Bandeiras de seda” (2023). A primeira é feita com geoprópolis, caixas de abelha, objetos em latão, telas de vídeo e cera; já na segunda, a cera aparece permeando o processo de pintura em seda, realizado em parceria com o coletivo Ateliê Vivo. Além desses estandartes, há outras duas séries de bandeiras em defesa das abelhas. Em todas elas vemos manchas centrais: são desenhos dos territórios brasileiros nos quais Machado suprimiu as fronteiras estaduais e reorganizou conforme a presença de cada espécie de abelha, cujos nomes vêm marcados no topo de cada bandeira. Por fim, a instalação “Bombas de sementes” (2023) feitas com terra, argila e sementes de plantas nativas. Livres para uso público, nos instigam ao envolvimento, ressoando o quilombola Nego Bispo dependem da nossa ação de arremessá-las para que elas possam germinar.
Geoprópolis é convite a uma dança, cujos gestos aparecerão nos movimentos de nossos braços, dedos, pernas e pescoços ao lançarmos as bombas de sementes. Ao longo das três derivas que farão parte da programação educativo-cultural, nos abaixaremos, nos agacharemos, nos esticaremos, nos contorceremos e nos aproximaremos para olhar nos ocos das árvores, nas fendas dos muros, nas cavidades das paredes, nos postes, ou ainda, no chão.
É o que as abelhas sem ferrão fazem e nos levam a fazer: rastrear outra cidade sobre e apesar de todo metal, concreto e asfalto: insistir em fazer floresta.
texto de Khadyg Fares, agosto de 2023. Curadoria de Arasy Benitez e Khadyg Fares
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Geoprópolis
Polis pró geo
Para o caribenho Malcom Ferdinand, autor do livro "Uma ecologia decolonial", a destruição do meio ambiente e o legado colonial racista estão inextricavelmente ligados. A vida dos povos nativos, dos escravizados e o ecossistema como um todo foram menosprezados durante o período de exploração colonial que deu origem à modernidade, resultando na normalização das desigualdades decorrentes da divisão social do trabalho, no processo de acumulação primitiva do capital e o subsequente crescimento econômico desenfreado. O projeto de alienação cultural colonial, que teve como principal parceira a catequese católica e mais tarde o cristianismo, instalaram em nosso território, junto ao racismo e o patriarcado, o especismo, criando assim as condições que possibilitam o ataque contínuo ao meio ambiente.
Há mais de 10 anos, João Machado pesquisa as abelhas nativas e desenvolve trabalhos junto com elas em seu atelier localizado em Bocaina de Minas, se colocando como co-criador num exercício de abandono do especismo fundado neste território junto com o "descobrimento" do "Brasil". E se o nome deste território fosse outro? Qual seria a dimensão e quais as fronteiras de um território que não tenha sido desenhado pelo arranjo do capital? E se, como a das abelhas, a nossa sociedade fosse matriarcal? São alguns dos questionamentos de Geoprópolis. A única certeza é que o legado colonial destruiu a polis pró geo que aqui existiu e é nossa responsabilidade agir em outra direção, sempre trazendo à luz as violências que o capital suscita.
O ato de caminhar coletivamente pela cidade para achar abelhas nativas é a principal proposta de Geoprópolis , onde o encontro é fundamental, possibilitando a troca de ideias no espaço público durante o percurso. É uma reunião de pessoas para o inútil, um convite para o lúdico desinteressado. É um chamado para andar pela cidade que lembra as derivas debordianas, mas que se diferencia, pois a preocupação não é exatamente com o efeito daquilo presente na geografia urbana sobre a psique humana, mas em como somos afetados pela ausência, pela destruição e o apagamento. Enquanto a deriva situacionista faz do ato de caminhar um método de apreensão dos afetos urbanos, na tentativa de estudar os efeitos do ambiente urbano no estado psíquico e emocional das pessoas que a praticam, a proposta de Geoprópolis é refletir e dialogar sobre os efeitos emocionais da quase ausência de natureza e das vidas que são constantemente inferiorizadas nesse processo, observado e percebendo como esses insetos sociais sobrevivem, assim como nós, apesar do projeto do capital.
texto de Arasy Benítez, agosto 2023 Curadoria Arasy Benítez e Khadyg Fares
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ARQUITETURAS PARA ABELHAS
JOÃO MACHADO
“Nossa sociabilidade tem que ser repensada para além
dos seres humanos, tem que incluir abelhas, tatus,
baleias, golfinhos. Meus grandes mestres da vida são
uma constelação de seres — humanos e não humanos”
Ailton Krenak
No capítulo intitulado Aliança Afetiva, da obra Futuro Ancestral, Ailton Krenak apresenta a
ideia de afetos entre mundos não iguais, entre seres radicalmente desiguais. Reconhecer a
intrínseca diferença entre os seres e se implicar, resultando num senso de responsabilidade
e na necessidade de uma reflexão prévia à relação com esses seres. Pois ao interagir com
o outro, humano ou não, temos o poder de afetar. A aliança afetiva trata-se de sentir a vida
em outros seres e de se perceber passível de afetar e ser afetado e, ao mesmo tempo,
experimentar a não centralidade do humano.
O artista João Machado tenta conceber alianças afetivas em várias situações de sua
prática artística. Seja na criação das formas das esculturas em cerâmica, ou por exemplo,
no uso do própolis sobre o papel que revela formas arredondadas e ocas, como se
estivesse retornando a sua forma de origem quando aquela resina fazia parte do
corpo/árvore. O artista usa essas “manchas” de própolis sobre o papel, como um construtor
fazendo uso de uma planta baixa antes de erguer a construção. Depois de pronta, as
abelhas habitam essas casas e são elas quem finalizam a obra, construindo a entrada em
cerume ou geoprópolis, termo que dá nome à exposição, e que é o mesmo material que deu
origem aos desenhos.
Nesta exposição estão reunidas esculturas, desenhos, obras gráficas, um vídeo e
atividades educativas em torno do tema principal da pesquisa e militância do artista, as
abelhas nativas do Brasil. Em nosso território habitam cerca de 320 espécies de abelhas
nativas sociais e mais de 1500 abelhas solitárias. São elas as responsáveis pela polinização
das plantas e são essenciais para a nossa sobrevivência. Ameaçadas pelo desmatamento,
pela redução de seus habitats naturais e pela concorrência da agressiva abelha europeia,
que é exótica ao nosso território, nossas abelhas correm perigo de extinção antes mesmo
de serem conhecidas por grande parte das pessoas.
O trabalho de João Machado é um convite, não somente ao conhecimento desses
pequenos seres tão importantes, mas principalmente um convite para o convívio, na
produção dessas alianças afetivas. No vídeo “Casa Mirim”, João apresenta a construção de
uma casa/obra onde esse convívio se dá no seu sentido mais literal. “Casa Mirim” é uma
pequena casa numa área rural adaptada para abrigar humanos e abelhas.
Essa ideia de convívio entre humanos e abelhas, é trazida não somente para pensar o
ambiente rural, mas também para pensar a cidade. Na série “Arquitetura para abelhas
solitárias” João produz imagens (com ajuda de inteligência artificial) para imaginar uma
cidade feita de prédios cobertos de tubos cerâmicos, idealizando moradias que abelhas e
humanos poderiam compartilhar. Essa utopia de uma cidade concebida para humanos e
abelhas é uma maneira de subverter a hierarquia falida do antropoceno e estimular uma
nova maneira de se relacionar com outras espécies e também entre nós.
Apesar da hostilidade das cidades com a natureza, as abelhas resistem. Através de
caminhadas coletivas, há dois anos João vem localizando, identificando e mapeando
abelhas nativas que sobrevivem na cidade de São Paulo. Essas derivas de mapeamento
são uma oportunidade de trazer para a consciência a existência desse outro não humano
na cidade, observar como fazem para subsistir à forma como nós o afetamos e assim
pensar sobre a maneira como, nós humanos, podemos passar a afetar de maneira positiva
esses corpos não humanos que são fundamentais para a nossa vida.
ARASY BENITEZ
KHADYG FARES
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